Esse
foi o texto mais difícil que escrevi até agora. O Radiohead é um dos grandes
ícones da música pop que desafia paradigmas. Mesmo produzindo músicas com
temáticas densas, sem apelo comercial, renovando a sonoridade a cada álbum, o
Radiohead é uma das bandas mais populares do mundo e já vendeu mais de 30
milhões de discos ao longo de sua carreira. Como uma banda que mudou tanto sua
sonoridade, de um álbum para outro, pode ter conseguido aumentar sua base de fã
e suas vendas? Mais importante ainda: por que houve essa mudança? Se ThomYorke, ainda pequeno, dizia que queria ser uma estrela pop, por que ele
arriscaria mudar a fórmula do sucesso já estabelecido nos primeiros anos da
banda? Para iniciar essa análise, é justamente nesses primeiros anos que olharemos. Façamos então uma breve análise histórica contextual.
Breve histórico
O
Radiohead era uma banda que quase não existiu. Batizada de On a Friday (por ser
sexta-feira o dia que eles se reuniam para ensaiar), Thom Yorke, Ed O’Brien,
Phillip Selway e os irmãos Colin e Jonny Greenwood se separaram logo após o
término do colegial, e só voltariam a se encontrar quando já formados em suas
respectivas universidades. Já batizados de Radiohead (baseada na faixa homônima
do álbum do Talking Heads, “True Stories”), lançou em 1991 sua primeira
compilação de músicas, “Manic Hedgedog”, que continha algumas músicas que
viriam a aparecer em seu álbum debutante, “Pablo Honey”. No meio tempo entre a
gravação desta compilação e do álbum, alguns episódios já sinalizavam o que o
Radiohead viria a ser. Um deles é quando a banda foi para Londres assinar seu
primeiro contrato com uma subsidiária da EMI, a Parlophone, seu
representante, Rupert Perry, disse a eles que a música que ele havia mais
gostado deles era “Phillipa Chicken”, e Jonny imediatamente respondeu: “bom,
isso é engraçado, nós descartamos ela”! Embarcando em uma turnê de suporte a
bandas nada mainstreams da
Inglaterra, Thom Yorke já demonstrou seus primeiros sinais de intensidade,
raspando totalmente seu cabelo, entupindo-se de bebida e fumo, levando a banda
a até mesmo a cancelar shows. Toda essa intensidade de Thom é importante ser
observada, já que ao longo dos próximos parágrafos, perceberemos o quão ela foi
essencial para os direcionamentos da banda.
Depois
de um tempo na estrada e o lançamento do EP “Drill”, que contava com “You” e
“Thinking About You”, ambas músicas do “Manic Hedgedog” que viriam a aparecer em
“Pablo Honey”, o Radiohead entra no estúdio para gravar o dito cujo. Com
influências do shoegaze, grunge e punk, a banda já denunciava uma sofisticação no som de suas três
guitarras. Há duas músicas nesse momento que são extremamente importantes para
compreensão da obra deles: “Creep” e “Anyone Can Play Guitar”. Esta última foi
escrita por Jonny Greenwood e conta sobre
como ele aprendeu a tocar guitarra com seu pai. Mas, na interpretação de
Thom, ela era a respeito de subir em um palco, fazer de si um idiota para ser
um rockstar, o que já indicava as
desilusões de Yorke com a carreira artística e com o rock, outro ponto importante para se entender “Kid A”. Já “Creep”
foi concebida em uma balada de Yorke, que tem seu refrão antecipado pela fúria
da guitarra de Jonny Greenwood quanto ao tipo de música que era ela. Isso
adicionou o toque necessário da música e foi um anúncio do desafio sonoro que a
banda propunha. Apesar de hoje em dia ser considera um hit, não foi esse efeito que ela teve na época, sendo considerada
pelas rádios como “muito depressiva” e somente garantindo seu sucesso quando
foi lançada pela segunda vez como single
em 1993, após algum sucesso conquistado em países como Estados Unidos e Israel.
Esse fato demonstrou como o Radiohead já havia sido mal compreendido em seu
primeiro momento.
Mas
mais do que isso: esse lançamento coincidiu com a volta de uma cansativa turnê
nos Estados Unidos (onde a música tinha feito sucesso) e ganhou a sétima
posição no single chart da
Inglaterra, o que trouxe a atenção para um Radiohead que já havia se
distanciado muito daquela música, em termos de composição. Como o próprio
produtor de “Pablo Honey”, Chris Hufford, disse “o álbum foi uma fotografia da
banda se desenvolvendo”. Esse é outro ponto crucial para se entender o
Radiohead, que sempre foi uma banda que procurou progredir em seu som, e isso significa
muda-lo e se distanciar daquilo que já foi feito. Além disso, piadas eram
direcionadas a Thom como “are you the
‘Creep’ guy/ você é o cara ‘Esquisito’?”, o que com certeza o deixava
irritado, tanto com a questão musical, quanto de sua aparência mesmo (ele tem
paralisia no olho esquerdo), que já havia gerado apelidos incômodos na escola.
Mas é inegável que o Radiohead havia chamado a atenção para eles, tanto em
números quanto em sua música. Após abrirem o show para o Tears for Fears, a
banda liderada por Roland Orzabal começou então a tocar “Creep” em todos os
seus shows, um reconhecimento em tanto para esse grande artista da música
popular britânica.
Depois
de um grande período de turnês e promoção, é dada a hora para a gravação do
segundo álbum, “The Bends”. Assim, a banda enfrentaria pela primeira vez algo
que a assombraria por algum tempo: a pressão para se produzir novas músicas
(leia-se hits), mesmo apesar de terem um
produtor experiente do lado como John Leckie (que havia produzido, dentre
outras, XTC e Pink Floyd). Além da questão sonora, a banda se viu toda junta em
Oxford, em um galpão alugado de uma fazenda, e sendo obrigada a entregar singles antes de mais nada, sendo isso o
que deveria guiar a gravação do álbum. Além de presos a esse fato, a banda
passava por conflitos internos, já que Thom Yorke estava com uma certa síndrome
de popstar que ele viria assumir
posteriormente, achando que seus companheiros não estavam se esforçando o
suficiente e que ele deveria ser guiado pelos seus próprios devaneios
artísticos. Mal sabia ele que, de fato, ele assumiria uma figura central, mas
por forças externas, e não internas. A banda então conseguiu atrasar o
lançamento deste single e entrou em
turnê novamente, já tocando músicas que viriam a aparecer no “The Bends”. Isso
deu confiança a eles na volta aos estúdios. Após mais turnê e shows consagrados
pela mídia e público, eles lançaram “My Iron Lung” como o primeiro single, que já trazia uma sonoridade nas
guitarras mais intrincadas e letras mais pessoais de Thom. O hit foi ignorado pelas rádios e lá
estava a banda na estrada novamente, dessa vez indo para lugares novos e
brigando muito durante esse período. Mas eles voltariam renovados para a
finalização do álbum, lançando “High and Dry” como novo single e alcançando a décima sétima posição no single chart. Depois de uma intensa agenda de promoção, o álbum
então é lançado e rapidamente alcança a sexta posição no chart da Inglaterra.
Descrito
por Collin como “pequenos retratos de intensidade emocional e experiências
pessoais”, “The Bends” trazia uma banda muito mais madura e coesa, sonoramente
e conceitualmente falando. O álbum trazia um pouco da temática pós-moderna que
o sucederia, como a capa, um boneco-modelo de aula de medicina, carregando uma
expressão entre o êxtase e a agonia, já que “The Bends” é o nome do efeito
colateral que causa dores aos mergulhadores quando eles sobem rápido demais à
superfície. Aclamado pela mídia, que dizia que eles haviam “pulado do segundo
para o terceiro álbum”, referindo-se claramente ao amadurecimento da banda.
Para garantir que essa imagem fosse reforçada, “Fake Plastic Trees” foi lançada
como single nos EUA, como pouco
sucesso. Eles só viriam a ganhar atenção lá quando o clipe de “Just” começasse
a ser constantemente reproduzido na MTV. Em compensação, em sua turnê com o REM
pela Europa, a banda foi aclamada por Michael Stipe, que se declarou um grande
fã deles. Eles participariam também do evento beneficente “Help!’, que tinha
Paul McCartney, Noel Gallagher e Brian Eno como participantes, e que viria a
incluir “Lucky” em sua coletânea, música que pertenceria ao próximo álbum, “OK
Computer”.
Como
último single, que é também a última
música desse álbum, veio “Street Spirit (Fade Out)”, com um clipe semelhante a
um sonho, talvez trazendo o que seria uma prévia da nova cara do Radiohead.
Mais melancólico, intimista, a música se conectava de certa forma com o próximo
projeto da banda. Mais turnês nos EUA vieram e mais reconhecimento com estas,
por parte de Alanis Morissette (com elogios) e da mídia, que aclamava a banda
como “o último respiro do rock nesses tempos”. Todo esse contexto é importante,
já que nessa breve análise história, percebemos uma escalada de sonoridade,
atenção da mídia e expectativa sobre o Radiohead. O que viria agora mudaria
para sempre a música pop como se era conhecida.
OK Computer
Radiohead
havia conquistado cacife o suficiente para ter recebido cem mil libras da
Parlophone, um estúdio só para eles e um prazo em aberto para a finalização do
álbum. Além disso, puderam gravar por si e utilizarem o produtor que quisessem.
Nesse momento, entra uma figura importante na história: Nigel Godrich. Até hoje
presente nos álbuns da banda, ele é considerado um sexto membro e tem
participação ativa em até mesmo termos de composição. Com um background de música eletrônica, ele
ajudaria a banda ganhar sua nova sonoridade. Sem muitos resultados iniciais,
apontados por Thom por consequência de eles estarem gravando em um estúdio de
Oxford, próximos às famílias, e isso estaria distraindo a todos. A banda teve
então que dar uma pausa para fazer mais uma turnê nos EUA, que já contaria com
algumas versões de músicas do “OK Computer”, como uma “Paranoid Android” de 14
minutos com solos de órgão improvisados.
Durante
essa turnê, foi requisitada uma música para a versão de “Romeu e Julieta” do
diretor Baz Luhrmann. “Street Spirit” foi usada como “Talk Show Host” e, nos
créditos do filme, apareceria “Exit Song (For a Film)”, mais uma música do “OK
Computer”, mas que não entrou no álbum da trilha sonora original (a pedido da
banda). Essa música foi gravada onde boa parte do álbum aconteceu, na mansão deSt. Catherine's Court, uma mansão abandonada da atriz Jane Seymour. Esse lugar permitiu que a
banda fizesse algumas coisas antes não feitas, como a utilização do reverb natural das salas, a
possibilidade de se gravar ao vivo (com muitos takes finais de Thom sendo os primeiros, garantindo
espontaneidade), e não havendo aquela pressão de ser vigiados a cada dia,
abrindo caminho para por exemplo a gravação de “Let Down” ocorrer no salão de
baile da casa durante a madrugada! Mas, como diz o ditado: o diabo mora nos
detalhes. Por trás dessa espontaneidade, morava uma banda preocupada em não
soar como eles em um momento anterior, que vinha abandonando as guitarras e as
abordagens sonoras convencionais em seu som, incorporando mais teclados (como o
Mellotron), samplers e elementos de diferentes estilos. “Airbag”, por exemplo,
foi a primeira tentativa da banda de usar o computador para editar a bateria, e
usando pausas no baixo, para soar como algo próximo do dub. A voz eletrônica em “Fitter Happier” é oriunda do programa de
leitura da Macintosh, ela reproduz um texto de Thom escrito espontaneamente
para refletir sua angústia no momento. Tamanha era ela que ele não conseguiu
proferir, e deixou isto por conta da máquina.
Essa
abordagem mostrou claramente do que se tratava o OK Computer: um protesto da
banda. Contra eles mesmos, contra o capitalismo, contra o tratamento da
indústria musical aos artistas e nosso modo de viver no século XXI. A capa é
uma sobreposição de diversas fotos Polaroids de um único enquadramento de uma
cena urbana, e todo o movimento dela está em uma única camada. Isso retratava
perfeitamente a sensação de impotência que a banda sentia, ao ter que seguir
sua agenda de promoções e assistir toda a vida por janelas de aeroportos, ônibus
e hotéis. Toda essa impotência foi atribuída por Yorke, de uma abordagem mais pós-moderna,
ao capitalismo. Suas leituras na época, como Noam Chomsky e Eric Hobsbawm,
contribuíram para essa crítica. Um dos grandes símbolos desta é o desenho do
encarte de dois homens apertando a mão, um deles com uma maleta na mão, que
representava a exploração do sistema capitalista. Ele foi incorporado na capa
de sua coletânea e viria a se tornar o símbolo que melhor representaria esse
álbum e o Radiohead.
Nós
poderíamos aqui escrever um texto inteiro falando sobre a complexidade musical
de “OK Computer” e seu conteúdo lírico. O importante aqui é levantar dois
pontos: o primeiro deles é que seus membros estavam incorporando influências
que saíam do rock e suas guitarras,
como Miles Davis, Can, Marvin Gaye, Krzysztof Pedererick, Johnny Cash e etc., o
que iniciaria uma quebra total com seus álbuns anteriores e com a visão de que
a mídia e o público haviam desenvolvido sobre eles. O segundo ponto é que
toda a temática do álbum iria se corroborar com os próximos acontecimentos na
vida da banda. “OK Computer” foi um sucesso absoluto de vendas e de crítica. As
campanhas inovadoras pela internet e pelos lugares públicos (como a letra de “Filter
Happier” espalhada em forma de instrução nas estações de metrô de Londres),
assim como a simbologia por trás dela (a subsidiária americana mandou 1000
fitas do álbum para a imprensa, todas coladas permanentemente em suas caixas)
contribui para ser o álbum número um dos charts
do Reino Unido e eventualmente posições altas posições nos charts do mundo inteiro. Ele
foi aclamado como um clássico logo em seu primeiro ano de existência e foi certificado com inúmeros discos de platina e ouro em um curto período de tempo, algo como
havia acontecido com “The Dark Side of the Moon” e, mesmo não sendo pensado como um álbum conceitual, a banda levou duas semanas só para decidir a ordem da tracklist. . Todos os holofotes,
então, voltaram-se a eles, a banda do momento.
A
melhor forma para retratar o que aconteceu nesse período é pelo documentário
lançado em 1998 chamado “Meeting People is Easy”. Uma extensa turnê de mais de
104 shows, que passou pela Europa, América do Norte e Japão, o documentário
retrata os bastidores desse período pela mesma ótica que “OK Computer” utiliza. Inúmeras sessões de fotos, entrevistas, compromissos com imprensa,
todos os fatores que já perturbavam a banda nos anos anteriores ganharam
proporções míticas e, ao longo da turnê, foram criando angústia e frustrações
intra e interpessoal dentro dela. Podemos ver o cansaço de seus integrantes
transbordarem em algumas sessões e o modo como Thom Yorke foi se tornando
agressivo com as pessoas a sua volta (tanto com a banda quanto com a imprensa).
Michael Stipe, para ajudar nesse colapso emocional de Thom, ensinou-o o mantra
“I’m not here, this isn’t happening/ eu
não estou aqui, isso não está acontecendo”, que viria a se tornar um dos
embriões de “Kid A”, “How to Disappear Completely”, que inclusive pode ser
vista sendo executada por Yorke em uma das passagens de som retratadas no
documentário. É com esse senso de alienação que iniciamos nossa análise, de
fato, de “Kid A”.
O passo sem volta
“Eu
sempre usei a música como uma maneira de seguir em frente e lidar com as
coisas, e eu senti que a coisa que me ajudava a lidar com as coisas de minha
vida foi vendida para o mais alto lance e eu estava aceitando este. Eu não
poderia lidar com isso”. Essa é a frase que Thom descreve o sentimento dele em relação ao “OK Computer”. Ele estava extremamente incomodado com o fato de que
bandas estavam procurando seguir a sonoridade de Radiohead, e chamava a música
da época de “buzz fridge/ barulho de
geladeira”, uma analogia para descrever músicas que soavam tão iguais que
eram igualmente ignoradas como o barulho da geladeira é. Disse ele também que não queria mais ser rockstar (lembram de "Anyone Can Play Guitar"?), totalmente desiludido com seus sonhos primários de se tornar uma estrela. Nesse sentido, mais
uma vez, não só ele como o Radiohead inteiro, queria seguir em frente
sonoramente. Yorke havia comprado um laptop
anteriormente, e agora havia comprado um piano, que instalara em sua nova casa
em Cornwall, onde passou um tempo isolado, desenhando e caminhando muito (a
repetição da palavra walking em “Morning
Bell” faz justamente referência a isso). Ele se voltou mais ao piano,
abandonando quase que completamente a guitarra, e nessa época compôs em seu
piano “Everything’s in its Right Place” e “Pyramid Song”. Aqui, podemos começar
a contar sobre os insights de seu
álbum através de sua própria tracklist.
A sua primeira faixa, “Everything’s
in its Right Place”, é um grande reflexo do que havia acontecido com a banda
naquele momento: mais ritmo do que harmonia. O Radiohead havia se inspirado no
álbum “Remain in Light” do Talking Heads para compor este álbum. Nas palavras
de Yorke, ele disse que quando compunham no modo tradicional, ele tinha que se
ater ao que estava fazendo, e não tinha essa visão externa da própria música.
Utilizando seu laptop, Yorke pode
perceber que criando um ritmo e deixando ele repetir em looping, aquilo permitia uma contemplação externa na música e fazia
a composição fluir. Além disso, a questão lírica havia mudado de abordagem também:
Yorke tinha desenvolvido um certo bloqueio para escrever, e estava jogando fora
continuamente o que escrevia e não gostava. No entanto, sua postura mudou junto
ao álbum, onde ele começou a guardar tudo que escrevia e tentar criar letras e
ideias com as frases soltas que compunha. A letra e composição dessa faixa
reflete exatamente isso: ela possui cerca de dois riffs, um ritmo contínuo, três frases e a repetição constante
desses atributos. A voz de Yorke se transforma em um instrumento, e aparece em
estéreo, com pequenos trechos editados, em diferentes pitches e velocidades e em reverso, que dão um tom mais neurótico
ainda. A música não possui guitarra. Na verdade, ela é basicamente uma composição
de estúdio, com samplers, piano, baixo e bateria eletrônica. Definitivamente, o
Radiohead havia mudado de direção.
A segunda faixa, ahomônima ao álbum, é uma canção de ninar com intenções não muito acalentadoras,
totalmente eletrônica, com mais samplers e a voz de Yorke praticamente inteligível
de tão processada que está. Esse processamento foi através de um instrumento
chamado ondes Martenot, uma espécie
de “theremin deitado”, que se tem mais controle de sua escala. Esse instrumento
viria a ser uma marca do álbum e acompanharia o Radiohead em suas turnês. Com
uma certa influência da glitch music,
a faixa mais uma vez não apresenta guitarras e apenas uma série de camadas de
sintetizadores, vozes e bateria processada.
A
terceira faixa, “The National Anthem”, é uma das mais marcantes do álbum, e com
certeza dá o seu tom caótico mais explicitamente possível. Oriunda de um riff antigo de baixo, que é então
distorcido e percorre a música inteira. A bateria então rompe, pausa, cresce,
diminui, causando a sensação de inconstância. Podemos ouvir o ondes Martenot claramente nessa música,
um som fantasmagórico que realça o clima apocalíptico da faixa. Há um som de
rádio também, processado, que viria a ser outra marca do Radiohead ao vivo,
onde Jonny toma em sua mão um pequeno rádio com delays e processadores embutidos para criar um clima de confusão moderna, algo como “são tantas notícias e fatos que nem consigo processar”. A
guitarra então aparece pela primeira vez, mas totalmente processada e irreconhecível,
girando em delay no meio do clima
caótico da música. A influência do jazz
novamente marca presença no som da banda, com uma sessão de sopros inspiradas
no “caos organizado” de Charles Mingus em seu álbum ao vivo “Town Hall Concert”.
A intenção era soar como o som do trânsito nas grandes cidades, e a empolgação
de Yorke foi tanta durante a condução da sessão que ele quebrou seu pé de tanto
pular! Essa música capta todo o sentimento que o álbum queria passar: a nova geração,
de mesma idade da banda, encontrava-se sufocada e perdida em tanta informação,
barulho e caos que o capitalismo tinha gerado nos grandes centros urbanos. “Everyone is so near, What’s going on?/ Todo mundo está tão perto, o que está
acontecendo?” ilustra esse pavor que havia trespassado a banda em sua
exaustiva turnê anterior e conecta com o sentimento de todos aqueles que se
sentiam invadidos pelo caos urbano em seus corações.
A quarta faixa, “How to
Disappear Completely”, cai como uma luva no contexto do álbum. Essa é a faixa
que mencionei anteriormente e que se conecta com os sentimentos de Yorke de
estar à beira de um colapso quando estava em turnê e confrontado por todas as
exigências que a agenda de um álbum bem sucedido como “OK Computer” demandava.
O mantra ensinado por Michael Stirpe evoluiu para essa linda canção, com
arranjos orquestrais de Jonny Greenwood, que contou com a Orchestra of St. John's (uma orquestra com as mesmas influências de Jonny), um baixo caminhando
junto com sua percussão e bateria. “Strobe lights and blow speakers,
[...] I’m not here/ Luzes piscantes e falantes estourando, [...]
eu não estou aqui” refere-se claramente a sensação que Yorke estava
sentindo nos palcos. Esta música então vem com a mesma função teve para
ele: acalmar o ouvinte após todo o caos imposto por “The National Anthem”. Pela
primeira vez, as cordas metálicas aparecem em forma de violão e um belo slide na guitarra elétrica, que cria um riff acalentador junto com os belos
falsetes de Thom. A quinta faixa, “Treefingers”, vem de Yorke sampleando a
guitarra de O’Brien e criando uma peça ambiental maravilhosa, e também dá esse
tom de calma que “How to...” passa. Ela denunciava também mais uma influência
também de Thom, a música ambiental de, por exemplo, Aphex Twin.
Na
sexta faixa, “Optimistic”, é a primeira vez que ouvimos guitarras de fato.
Quando ela estava em fase de composição, a banda temia que eles iriam cair no
mesmo campo de seus álbuns anteriores, justamente pela presença exacerbada das
guitarras e sua estrutura linear. Seu refrão, “you can try the best you can, and the best you can is good enough/ você
pode tentar o seu melhor, e o melhor que você pode é bom o suficiente”
elucida o sentimento que ele teve e o que ele ouvia ao achar que, naquele
momento, tudo o que eles possuíam não era digno de lançamento. Thom constata em
uma de suas entrevistas que, ao finalizar aquela faixa, ele sentia que “OK
Computer” e toda a dor envolvida em sua promoção e turnê fora deixada para trás
definitivamente. A letra ainda traz uma sensação de “darwinismo social” causada
pelo capitalismo selvagem que Thom denunciara mais claramente em “OK Computer”.
Este é o momento que o Radiohead se aproxima mais, sonoramente falando, de seu
passado. Na sétima faixa, “In Limbo”, a banda trás uma intrincada música, com
frases sincopadas na guitarra, uma grande quantidade de reverbs nos instrumentos, que traz a sensação de realmente seu
eu-lírico estar perdido em um grande limbo. Em um intricado compasso, a banda
cria um clima etéreo que é totalmente quebrado no final, por uma distorção e
sobreposição de camadas do convite “Come
In, Come In/ Entre, entre”, denunciando o caos que estava por vir mais uma
vez.
A
oitava faixa, “Idioteque”, é oriunda de instrumentos com samplers e
sintetizadores feito por Jonny Greenwood, em mais de 50 minutos de fita,
entregues na mão de Yorke, que usou apenas um segmento de cerca de oito
segundos. Coincidentemente, esse trecho continha frases de músicas já
existentes, que eram “Mild und Leise” de Paul Lansky e “Short Piece”, de Arthur
Kreiger, ambos artistas quais Jonny possuía muita influência e que autorizaram
o uso dos trechos. A música foi feita para se soar como uma música de discoteca
caótica e muito alta, aquela que “está saindo tão alta das caixas que você sabe
que está causando dano”, nas palavras de Thom. A letra refere-se a uma temática
intrínseca do álbum, que estava assombrando Yorke e Stanley Donwood,
responsável pela arte de “Pablo Honey” e desse álbum: a possível nova era
glacial e as mudanças climáticas, e um mundo pós-cataclismo. Imagens do
Worldwatch Institute, que vinham acompanhadas de estatísticas sobre o derretimento
das calotas polares, deu o tom apocalíptico necessário para o álbum. Sua capa
traz montanhas de gelo que, nas palavras de Donwood, traziam a ideia de “uma
paisagem de poder...um tipo de poder cataclísmico existente em paisagens como
essa”. Ela também é presente no encarte (como na imagem abaixo), que carrega
também uma espécie de piscina de sangue. Essa ideia é oriunda da novela “Brought to Light”, de Alan Moore e Bill Sienkiewicz, sobre uma distopia com terrorismo
de estado onde pessoas foram assassinadas e essa contagem foi feita através de
piscinas de 50 galões cheias de sangue. Essa imagem o assombrou e fez usar
desse artifício como o “símbolo de perigo iminente e expectativas despedaçadas”
que o álbum trazia.
“Morning Bell”, a penúltima faixa do álbum, traz uma letra completamente paranoica,
acompanhada de uma balada em cinco por quatro. Sua letra circula pela casa do
eu-lírico e por frases aleatórias como “where’d
you park your car/ onde você estacionou seu carro?”, juntamente a uma
repetição harmônica e guitarras processadas em barulhos que aumentam ainda mais
a paranoia em cima da música. Ela é uma faixa soturna que dá o tom final de
caos do álbum, e talvez denuncia como Thom Yorke escapou de seus próprios
fantasmas, com o final da letra sendo “walking/
andando” incessantemente, até chegar em sua última faixa, “Motion PictureSoundtrack”, que Thom compôs em um órgão de pedal, influenciado por Tom Waits,
e foi complementada por samplers de harpas por Jonny Greenwood para dar um
clima de trilha sonora de “filmes da Disney nos anos 50”. A letra traz o
eu-lírico perdido em uma meia-vida com alguém que ele acha que está ficando
louco, e parece estar se matando, em uma frase final “I will see you in the next life/ eu vou te ver na próxima vida”, dando
um tom realmente ambíguo de esperança/desesperança por parte do ouvinte.
Este
álbum retratou como nunca os sentimentos que envolveram o Radiohead e seus
membros durante esses anos. Foram necessárias diversas sessões em diversos
lugares (inclusive em países diferentes), horas de fita e muitas quebras de
paradigmas para que esse álbum fosse concebido. A banda, quando percebera o
rumo que havia tomado, causou tanto pânico entre eles quanto o álbum causa em
nós: será que abandonamos nossos instrumentos? Damos um passo sem volta? O
álbum não teve singles para promove-lo, não dando assim ideias para
banda de uma expectativa de recepção do público de suas novas músicas. Eles usaram da internet para promover o álbum e, pela primeira vez na
história (que se há notícia), o streaming
foi utilizado para promover um novo álbum. Assim, o álbum foi pirateado em
sites como o Napster, inicialmente visto como uma consequência negativa. Mas a banda percebeu que na verdade isso fez com que as pessoas se engajassem mais
com as músicas novas, causando o efeito de que muitos já cantavam a letra deles
em shows onde o álbum não havia sido lançado ainda. A verdade é que os números
não mentem: mais uma vez, o Radiohead foi número um no chart do Reino Unido e, pela primeira vez, também nos Estados
Unidos, ficando também entre as cinco primeiras posições em vários outros
países.
“Kid A” fecha um ciclo e inicia outro na vida da banda, mas, mais do que
isso, ele antecipa o século XXI em alguns meses: todas as novas formas de
consumir música acontecem com ele e todo o seu conteúdo reflete uma geração
qual faço parte e, mesmo 16 anos depois de seu lançamento, sente-se contemplado. Ele permitiu que houvesse inovação no mainstream, que foi sempre complicada, e denunciou que talvez o mundo artístico estava preparado para voltar a abrir sua cabeça como outrora. Um som mais "head" do que "Radio". Quase que instantaneamente compreendido pelo público e pela crítica, este álbum
nunca envelhecerá, liricamente e sonoramente, e sempre será digno de
revisitação, mesmo que traga alguns fantasmas à tona, que na verdade, são
sentimentos compartilhados por milhões de pessoas que o têm. Ele só corrobora o
que Steven Wilson diz em seu documentário “Insurgentes”: a música melancólica,
apesar de triste, mostrando que não estamos sozinhos em nossas angústias,
confortando-nos e trazendo-nos, de certa maneira, felicidade.