Thursday 8 September 2016

Kid A - mais "head" do que "Radio"

                

              Esse foi o texto mais difícil que escrevi até agora. O Radiohead é um dos grandes ícones da música pop que desafia paradigmas. Mesmo produzindo músicas com temáticas densas, sem apelo comercial, renovando a sonoridade a cada álbum, o Radiohead é uma das bandas mais populares do mundo e já vendeu mais de 30 milhões de discos ao longo de sua carreira. Como uma banda que mudou tanto sua sonoridade, de um álbum para outro, pode ter conseguido aumentar sua base de fã e suas vendas? Mais importante ainda: por que houve essa mudança? Se ThomYorke, ainda pequeno, dizia que queria ser uma estrela pop, por que ele arriscaria mudar a fórmula do sucesso já estabelecido nos primeiros anos da banda? Para iniciar essa análise, é justamente nesses primeiros anos que olharemos. Façamos então uma breve análise histórica contextual.

Breve histórico

                O Radiohead era uma banda que quase não existiu. Batizada de On a Friday (por ser sexta-feira o dia que eles se reuniam para ensaiar), Thom Yorke, Ed O’Brien, Phillip Selway e os irmãos Colin e Jonny Greenwood se separaram logo após o término do colegial, e só voltariam a se encontrar quando já formados em suas respectivas universidades. Já batizados de Radiohead (baseada na faixa homônima do álbum do Talking Heads, “True Stories”), lançou em 1991 sua primeira compilação de músicas, “Manic Hedgedog”, que continha algumas músicas que viriam a aparecer em seu álbum debutante, “Pablo Honey”. No meio tempo entre a gravação desta compilação e do álbum, alguns episódios já sinalizavam o que o Radiohead viria a ser. Um deles é quando a banda foi para Londres assinar seu primeiro contrato com uma subsidiária da EMI, a Parlophone, seu representante, Rupert Perry, disse a eles que a música que ele havia mais gostado deles era “Phillipa Chicken”, e Jonny imediatamente respondeu: “bom, isso é engraçado, nós descartamos ela”! Embarcando em uma turnê de suporte a bandas nada mainstreams da Inglaterra, Thom Yorke já demonstrou seus primeiros sinais de intensidade, raspando totalmente seu cabelo, entupindo-se de bebida e fumo, levando a banda a até mesmo a cancelar shows. Toda essa intensidade de Thom é importante ser observada, já que ao longo dos próximos parágrafos, perceberemos o quão ela foi essencial para os direcionamentos da banda.

                Depois de um tempo na estrada e o lançamento do EP “Drill”, que contava com “You” e “Thinking About You”, ambas músicas do “Manic Hedgedog” que viriam a aparecer em “Pablo Honey”, o Radiohead entra no estúdio para gravar o dito cujo. Com influências do shoegaze, grunge e punk, a banda já denunciava uma sofisticação no som de suas três guitarras. Há duas músicas nesse momento que são extremamente importantes para compreensão da obra deles: “Creep” e “Anyone Can Play Guitar”. Esta última foi escrita por Jonny Greenwood e conta sobre  como ele aprendeu a tocar guitarra com seu pai. Mas, na interpretação de Thom, ela era a respeito de subir em um palco, fazer de si um idiota para ser um rockstar, o que já indicava as desilusões de Yorke com a carreira artística e com o rock, outro ponto importante para se entender “Kid A”. Já “Creep” foi concebida em uma balada de Yorke, que tem seu refrão antecipado pela fúria da guitarra de Jonny Greenwood quanto ao tipo de música que era ela. Isso adicionou o toque necessário da música e foi um anúncio do desafio sonoro que a banda propunha. Apesar de hoje em dia ser considera um hit, não foi esse efeito que ela teve na época, sendo considerada pelas rádios como “muito depressiva” e somente garantindo seu sucesso quando foi lançada pela segunda vez como single em 1993, após algum sucesso conquistado em países como Estados Unidos e Israel. Esse fato demonstrou como o Radiohead já havia sido mal compreendido em seu primeiro momento.

                Mas mais do que isso: esse lançamento coincidiu com a volta de uma cansativa turnê nos Estados Unidos (onde a música tinha feito sucesso) e ganhou a sétima posição no single chart da Inglaterra, o que trouxe a atenção para um Radiohead que já havia se distanciado muito daquela música, em termos de composição. Como o próprio produtor de “Pablo Honey”, Chris Hufford, disse “o álbum foi uma fotografia da banda se desenvolvendo”. Esse é outro ponto crucial para se entender o Radiohead, que sempre foi uma banda que procurou progredir em seu som, e isso significa muda-lo e se distanciar daquilo que já foi feito. Além disso, piadas eram direcionadas a Thom como “are you the ‘Creep’ guy/ você é o cara ‘Esquisito’?”, o que com certeza o deixava irritado, tanto com a questão musical, quanto de sua aparência mesmo (ele tem paralisia no olho esquerdo), que já havia gerado apelidos incômodos na escola. Mas é inegável que o Radiohead havia chamado a atenção para eles, tanto em números quanto em sua música. Após abrirem o show para o Tears for Fears, a banda liderada por Roland Orzabal começou então a tocar “Creep” em todos os seus shows, um reconhecimento em tanto para esse grande artista da música popular britânica.

                Depois de um grande período de turnês e promoção, é dada a hora para a gravação do segundo álbum, “The Bends”. Assim, a banda enfrentaria pela primeira vez algo que a assombraria por algum tempo: a pressão para se produzir novas músicas (leia-se hits), mesmo apesar de terem um produtor experiente do lado como John Leckie (que havia produzido, dentre outras, XTC e Pink Floyd). Além da questão sonora, a banda se viu toda junta em Oxford, em um galpão alugado de uma fazenda, e sendo obrigada a entregar singles antes de mais nada, sendo isso o que deveria guiar a gravação do álbum. Além de presos a esse fato, a banda passava por conflitos internos, já que Thom Yorke estava com uma certa síndrome de popstar que ele viria assumir posteriormente, achando que seus companheiros não estavam se esforçando o suficiente e que ele deveria ser guiado pelos seus próprios devaneios artísticos. Mal sabia ele que, de fato, ele assumiria uma figura central, mas por forças externas, e não internas. A banda então conseguiu atrasar o lançamento deste single e entrou em turnê novamente, já tocando músicas que viriam a aparecer no “The Bends”. Isso deu confiança a eles na volta aos estúdios. Após mais turnê e shows consagrados pela mídia e público, eles lançaram “My Iron Lung” como o primeiro single, que já trazia uma sonoridade nas guitarras mais intrincadas e letras mais pessoais de Thom. O hit foi ignorado pelas rádios e lá estava a banda na estrada novamente, dessa vez indo para lugares novos e brigando muito durante esse período. Mas eles voltariam renovados para a finalização do álbum, lançando “High and Dry” como novo single e alcançando a décima sétima posição no single chart. Depois de uma intensa agenda de promoção, o álbum então é lançado e rapidamente alcança a sexta posição no chart da Inglaterra.

                Descrito por Collin como “pequenos retratos de intensidade emocional e experiências pessoais”, “The Bends” trazia uma banda muito mais madura e coesa, sonoramente e conceitualmente falando. O álbum trazia um pouco da temática pós-moderna que o sucederia, como a capa, um boneco-modelo de aula de medicina, carregando uma expressão entre o êxtase e a agonia, já que “The Bends” é o nome do efeito colateral que causa dores aos mergulhadores quando eles sobem rápido demais à superfície. Aclamado pela mídia, que dizia que eles haviam “pulado do segundo para o terceiro álbum”, referindo-se claramente ao amadurecimento da banda. Para garantir que essa imagem fosse reforçada, “Fake Plastic Trees” foi lançada como single nos EUA, como pouco sucesso. Eles só viriam a ganhar atenção lá quando o clipe de “Just” começasse a ser constantemente reproduzido na MTV. Em compensação, em sua turnê com o REM pela Europa, a banda foi aclamada por Michael Stipe, que se declarou um grande fã deles. Eles participariam também do evento beneficente “Help!’, que tinha Paul McCartney, Noel Gallagher e Brian Eno como participantes, e que viria a incluir “Lucky” em sua coletânea, música que pertenceria ao próximo álbum, “OK Computer”.

                Como último single, que é também a última música desse álbum, veio “Street Spirit (Fade Out)”, com um clipe semelhante a um sonho, talvez trazendo o que seria uma prévia da nova cara do Radiohead. Mais melancólico, intimista, a música se conectava de certa forma com o próximo projeto da banda. Mais turnês nos EUA vieram e mais reconhecimento com estas, por parte de Alanis Morissette (com elogios) e da mídia, que aclamava a banda como “o último respiro do rock nesses tempos”. Todo esse contexto é importante, já que nessa breve análise história, percebemos uma escalada de sonoridade, atenção da mídia e expectativa sobre o Radiohead. O que viria agora mudaria para sempre a música pop como se era conhecida.

OK Computer

                Radiohead havia conquistado cacife o suficiente para ter recebido cem mil libras da Parlophone, um estúdio só para eles e um prazo em aberto para a finalização do álbum. Além disso, puderam gravar por si e utilizarem o produtor que quisessem. Nesse momento, entra uma figura importante na história: Nigel Godrich. Até hoje presente nos álbuns da banda, ele é considerado um sexto membro e tem participação ativa em até mesmo termos de composição. Com um background de música eletrônica, ele ajudaria a banda ganhar sua nova sonoridade. Sem muitos resultados iniciais, apontados por Thom por consequência de eles estarem gravando em um estúdio de Oxford, próximos às famílias, e isso estaria distraindo a todos. A banda teve então que dar uma pausa para fazer mais uma turnê nos EUA, que já contaria com algumas versões de músicas do “OK Computer”, como uma “Paranoid Android” de 14 minutos com solos de órgão improvisados.

                Durante essa turnê, foi requisitada uma música para a versão de “Romeu e Julieta” do diretor Baz Luhrmann. “Street Spirit” foi usada como “Talk Show Host” e, nos créditos do filme, apareceria “Exit Song (For a Film)”, mais uma música do “OK Computer”, mas que não entrou no álbum da trilha sonora original (a pedido da banda). Essa música foi gravada onde boa parte do álbum aconteceu, na mansão deSt. Catherine's Court, uma mansão abandonada da atriz Jane Seymour. Esse lugar permitiu que a banda fizesse algumas coisas antes não feitas, como a utilização do reverb natural das salas, a possibilidade de se gravar ao vivo (com muitos takes finais de Thom sendo os primeiros, garantindo espontaneidade), e não havendo aquela pressão de ser vigiados a cada dia, abrindo caminho para por exemplo a gravação de “Let Down” ocorrer no salão de baile da casa durante a madrugada! Mas, como diz o ditado: o diabo mora nos detalhes. Por trás dessa espontaneidade, morava uma banda preocupada em não soar como eles em um momento anterior, que vinha abandonando as guitarras e as abordagens sonoras convencionais em seu som, incorporando mais teclados (como o Mellotron), samplers e elementos de diferentes estilos. “Airbag”, por exemplo, foi a primeira tentativa da banda de usar o computador para editar a bateria, e usando pausas no baixo, para soar como algo próximo do dub. A voz eletrônica em “Fitter Happier” é oriunda do programa de leitura da Macintosh, ela reproduz um texto de Thom escrito espontaneamente para refletir sua angústia no momento. Tamanha era ela que ele não conseguiu proferir, e deixou isto por conta da máquina.

                Essa abordagem mostrou claramente do que se tratava o OK Computer: um protesto da banda. Contra eles mesmos, contra o capitalismo, contra o tratamento da indústria musical aos artistas e nosso modo de viver no século XXI. A capa é uma sobreposição de diversas fotos Polaroids de um único enquadramento de uma cena urbana, e todo o movimento dela está em uma única camada. Isso retratava perfeitamente a sensação de impotência que a banda sentia, ao ter que seguir sua agenda de promoções e assistir toda a vida por janelas de aeroportos, ônibus e hotéis. Toda essa impotência foi atribuída por Yorke, de uma abordagem mais pós-moderna, ao capitalismo. Suas leituras na época, como Noam Chomsky e Eric Hobsbawm, contribuíram para essa crítica. Um dos grandes símbolos desta é o desenho do encarte de dois homens apertando a mão, um deles com uma maleta na mão, que representava a exploração do sistema capitalista. Ele foi incorporado na capa de sua coletânea e viria a se tornar o símbolo que melhor representaria esse álbum e o Radiohead.

               
           Nós poderíamos aqui escrever um texto inteiro falando sobre a complexidade musical de “OK Computer” e seu conteúdo lírico. O importante aqui é levantar dois pontos: o primeiro deles é que seus membros estavam incorporando influências que saíam do rock e suas guitarras, como Miles Davis, Can, Marvin Gaye, Krzysztof Pedererick, Johnny Cash e etc., o que iniciaria uma quebra total com seus álbuns anteriores e com a visão de que a mídia e o público haviam desenvolvido sobre eles. O segundo ponto é que toda a temática do álbum iria se corroborar com os próximos acontecimentos na vida da banda. “OK Computer” foi um sucesso absoluto de vendas e de crítica. As campanhas inovadoras pela internet e pelos lugares públicos (como a letra de “Filter Happier” espalhada em forma de instrução nas estações de metrô de Londres), assim como a simbologia por trás dela (a subsidiária americana mandou 1000 fitas do álbum para a imprensa, todas coladas permanentemente em suas caixas) contribui para ser o álbum número um dos charts do Reino Unido e eventualmente posições altas posições nos charts  do mundo inteiro. Ele foi aclamado como um clássico logo em seu primeiro ano de existência e foi certificado com inúmeros discos de platina e ouro em um curto período de tempo, algo como havia acontecido com “The Dark Side of the Moon” e, mesmo não sendo pensado como um álbum conceitual, a banda levou duas semanas só para decidir a ordem da tracklist. . Todos os holofotes, então, voltaram-se a eles, a banda do momento.

                A melhor forma para retratar o que aconteceu nesse período é pelo documentário lançado em 1998 chamado “Meeting People is Easy”. Uma extensa turnê de mais de 104 shows, que passou pela Europa, América do Norte e Japão, o documentário retrata os bastidores desse período pela mesma ótica que “OK Computer” utiliza. Inúmeras sessões de fotos, entrevistas, compromissos com imprensa, todos os fatores que já perturbavam a banda nos anos anteriores ganharam proporções míticas e, ao longo da turnê, foram criando angústia e frustrações intra e interpessoal dentro dela. Podemos ver o cansaço de seus integrantes transbordarem em algumas sessões e o modo como Thom Yorke foi se tornando agressivo com as pessoas a sua volta (tanto com a banda quanto com a imprensa). Michael Stipe, para ajudar nesse colapso emocional de Thom, ensinou-o o mantra “I’m not here, this isn’t happening/ eu não estou aqui, isso não está acontecendo”, que viria a se tornar um dos embriões de “Kid A”, “How to Disappear Completely”, que inclusive pode ser vista sendo executada por Yorke em uma das passagens de som retratadas no documentário. É com esse senso de alienação que iniciamos nossa análise, de fato, de “Kid A”.

O passo sem volta

                “Eu sempre usei a música como uma maneira de seguir em frente e lidar com as coisas, e eu senti que a coisa que me ajudava a lidar com as coisas de minha vida foi vendida para o mais alto lance e eu estava aceitando este. Eu não poderia lidar com isso”. Essa é a frase que Thom descreve o sentimento dele em relação ao “OK Computer”. Ele estava extremamente incomodado com o fato de que bandas estavam procurando seguir a sonoridade de Radiohead, e chamava a música da época de “buzz fridge/ barulho de geladeira”, uma analogia para descrever músicas que soavam tão iguais que eram igualmente ignoradas como o barulho da geladeira é. Disse ele também que não queria mais ser rockstar (lembram de "Anyone Can Play Guitar"?), totalmente desiludido com seus sonhos primários de se tornar uma estrela. Nesse sentido, mais uma vez, não só ele como o Radiohead inteiro, queria seguir em frente sonoramente. Yorke havia comprado um laptop anteriormente, e agora havia comprado um piano, que instalara em sua nova casa em Cornwall, onde passou um tempo isolado, desenhando e caminhando muito (a repetição da palavra walking em “Morning Bell” faz justamente referência a isso). Ele se voltou mais ao piano, abandonando quase que completamente a guitarra, e nessa época compôs em seu piano “Everything’s in its Right Place” e “Pyramid Song”. Aqui, podemos começar a contar sobre os insights de seu álbum através de sua própria tracklist.

                A sua primeira faixa, “Everything’s in its Right Place”, é um grande reflexo do que havia acontecido com a banda naquele momento: mais ritmo do que harmonia. O Radiohead havia se inspirado no álbum “Remain in Light” do Talking Heads para compor este álbum. Nas palavras de Yorke, ele disse que quando compunham no modo tradicional, ele tinha que se ater ao que estava fazendo, e não tinha essa visão externa da própria música. Utilizando seu laptop, Yorke pode perceber que criando um ritmo e deixando ele repetir em looping, aquilo permitia uma contemplação externa na música e fazia a composição fluir. Além disso, a questão lírica havia mudado de abordagem também: Yorke tinha desenvolvido um certo bloqueio para escrever, e estava jogando fora continuamente o que escrevia e não gostava. No entanto, sua postura mudou junto ao álbum, onde ele começou a guardar tudo que escrevia e tentar criar letras e ideias com as frases soltas que compunha. A letra e composição dessa faixa reflete exatamente isso: ela possui cerca de dois riffs, um ritmo contínuo, três frases e a repetição constante desses atributos. A voz de Yorke se transforma em um instrumento, e aparece em estéreo, com pequenos trechos editados, em diferentes pitches e velocidades e em reverso, que dão um tom mais neurótico ainda. A música não possui guitarra. Na verdade, ela é basicamente uma composição de estúdio, com samplers, piano, baixo e bateria eletrônica. Definitivamente, o Radiohead havia mudado de direção.

                A segunda faixa, ahomônima ao álbum, é uma canção de ninar com intenções não muito acalentadoras, totalmente eletrônica, com mais samplers e a voz de Yorke praticamente inteligível de tão processada que está. Esse processamento foi através de um instrumento chamado ondes Martenot, uma espécie de “theremin deitado”, que se tem mais controle de sua escala. Esse instrumento viria a ser uma marca do álbum e acompanharia o Radiohead em suas turnês. Com uma certa influência da glitch music, a faixa mais uma vez não apresenta guitarras e apenas uma série de camadas de sintetizadores, vozes e bateria processada.

                A terceira faixa, “The National Anthem”, é uma das mais marcantes do álbum, e com certeza dá o seu tom caótico mais explicitamente possível. Oriunda de um riff antigo de baixo, que é então distorcido e percorre a música inteira. A bateria então rompe, pausa, cresce, diminui, causando a sensação de inconstância. Podemos ouvir o ondes Martenot claramente nessa música, um som fantasmagórico que realça o clima apocalíptico da faixa. Há um som de rádio também, processado, que viria a ser outra marca do Radiohead ao vivo, onde Jonny toma em sua mão um pequeno rádio com delays e processadores embutidos para criar um clima de confusão moderna, algo como “são tantas notícias e fatos que nem consigo processar”. A guitarra então aparece pela primeira vez, mas totalmente processada e irreconhecível, girando em delay no meio do clima caótico da música. A influência do jazz novamente marca presença no som da banda, com uma sessão de sopros inspiradas no “caos organizado” de Charles Mingus em seu álbum ao vivo “Town Hall Concert”. A intenção era soar como o som do trânsito nas grandes cidades, e a empolgação de Yorke foi tanta durante a condução da sessão que ele quebrou seu pé de tanto pular! Essa música capta todo o sentimento que o álbum queria passar: a nova geração, de mesma idade da banda, encontrava-se sufocada e perdida em tanta informação, barulho e caos que o capitalismo tinha gerado nos grandes centros urbanos. “Everyone is so near, What’s going on?/ Todo mundo está tão perto, o que está acontecendo?” ilustra esse pavor que havia trespassado a banda em sua exaustiva turnê anterior e conecta com o sentimento de todos aqueles que se sentiam invadidos pelo caos urbano em seus corações.

                A quarta faixa, “How to Disappear Completely”, cai como uma luva no contexto do álbum. Essa é a faixa que mencionei anteriormente e que se conecta com os sentimentos de Yorke de estar à beira de um colapso quando estava em turnê e confrontado por todas as exigências que a agenda de um álbum bem sucedido como “OK Computer” demandava. O mantra ensinado por Michael Stirpe evoluiu para essa linda canção, com arranjos orquestrais de Jonny Greenwood, que contou com a Orchestra of St. John's (uma orquestra com as mesmas influências de Jonny), um baixo caminhando junto com sua percussão e bateria. Strobe lights and blow speakers, [...] I’m not here/ Luzes piscantes e falantes estourando, [...] eu não estou aqui” refere-se claramente a sensação que Yorke estava sentindo nos palcos. Esta música então vem com a mesma função teve para ele: acalmar o ouvinte após todo o caos imposto por “The National Anthem”. Pela primeira vez, as cordas metálicas aparecem em forma de violão e um belo slide na guitarra elétrica, que cria um riff acalentador junto com os belos falsetes de Thom. A quinta faixa, “Treefingers”, vem de Yorke sampleando a guitarra de O’Brien e criando uma peça ambiental maravilhosa, e também dá esse tom de calma que “How to...” passa. Ela denunciava também mais uma influência também de Thom, a música ambiental de, por exemplo, Aphex Twin.

                Na sexta faixa, “Optimistic”, é a primeira vez que ouvimos guitarras de fato. Quando ela estava em fase de composição, a banda temia que eles iriam cair no mesmo campo de seus álbuns anteriores, justamente pela presença exacerbada das guitarras e sua estrutura linear. Seu refrão, “you can try the best you can, and the best you can is good enough/ você pode tentar o seu melhor, e o melhor que você pode é bom o suficiente” elucida o sentimento que ele teve e o que ele ouvia ao achar que, naquele momento, tudo o que eles possuíam não era digno de lançamento. Thom constata em uma de suas entrevistas que, ao finalizar aquela faixa, ele sentia que “OK Computer” e toda a dor envolvida em sua promoção e turnê fora deixada para trás definitivamente. A letra ainda traz uma sensação de “darwinismo social” causada pelo capitalismo selvagem que Thom denunciara mais claramente em “OK Computer”. Este é o momento que o Radiohead se aproxima mais, sonoramente falando, de seu passado. Na sétima faixa, “In Limbo”, a banda trás uma intrincada música, com frases sincopadas na guitarra, uma grande quantidade de reverbs nos instrumentos, que traz a sensação de realmente seu eu-lírico estar perdido em um grande limbo. Em um intricado compasso, a banda cria um clima etéreo que é totalmente quebrado no final, por uma distorção e sobreposição de camadas do convite “Come In, Come In/ Entre, entre”, denunciando o caos que estava por vir mais uma vez.

                A oitava faixa, “Idioteque”, é oriunda de instrumentos com samplers e sintetizadores feito por Jonny Greenwood, em mais de 50 minutos de fita, entregues na mão de Yorke, que usou apenas um segmento de cerca de oito segundos. Coincidentemente, esse trecho continha frases de músicas já existentes, que eram “Mild und Leise” de Paul Lansky e “Short Piece”, de Arthur Kreiger, ambos artistas quais Jonny possuía muita influência e que autorizaram o uso dos trechos. A música foi feita para se soar como uma música de discoteca caótica e muito alta, aquela que “está saindo tão alta das caixas que você sabe que está causando dano”, nas palavras de Thom. A letra refere-se a uma temática intrínseca do álbum, que estava assombrando Yorke e Stanley Donwood, responsável pela arte de “Pablo Honey” e desse álbum: a possível nova era glacial e as mudanças climáticas, e um mundo pós-cataclismo. Imagens do Worldwatch Institute, que vinham acompanhadas de estatísticas sobre o derretimento das calotas polares, deu o tom apocalíptico necessário para o álbum. Sua capa traz montanhas de gelo que, nas palavras de Donwood, traziam a ideia de “uma paisagem de poder...um tipo de poder cataclísmico existente em paisagens como essa”. Ela também é presente no encarte (como na imagem abaixo), que carrega também uma espécie de piscina de sangue. Essa ideia é oriunda da novela “Brought to Light”, de Alan Moore e Bill Sienkiewicz, sobre uma distopia com terrorismo de estado onde pessoas foram assassinadas e essa contagem foi feita através de piscinas de 50 galões cheias de sangue. Essa imagem o assombrou e fez usar desse artifício como o “símbolo de perigo iminente e expectativas despedaçadas” que o álbum trazia.

               
     “Morning Bell”, a penúltima faixa do álbum, traz uma letra completamente paranoica, acompanhada de uma balada em cinco por quatro. Sua letra circula pela casa do eu-lírico e por frases aleatórias como “where’d you park your car/ onde você estacionou seu carro?”, juntamente a uma repetição harmônica e guitarras processadas em barulhos que aumentam ainda mais a paranoia em cima da música. Ela é uma faixa soturna que dá o tom final de caos do álbum, e talvez denuncia como Thom Yorke escapou de seus próprios fantasmas, com o final da letra sendo “walking/ andando” incessantemente, até chegar em sua última faixa, “Motion PictureSoundtrack”, que Thom compôs em um órgão de pedal, influenciado por Tom Waits, e foi complementada por samplers de harpas por Jonny Greenwood para dar um clima de trilha sonora de “filmes da Disney nos anos 50”. A letra traz o eu-lírico perdido em uma meia-vida com alguém que ele acha que está ficando louco, e parece estar se matando, em uma frase final “I will see you in the next life/ eu vou te ver na próxima vida”, dando um tom realmente ambíguo de esperança/desesperança por parte do ouvinte.


                Este álbum retratou como nunca os sentimentos que envolveram o Radiohead e seus membros durante esses anos. Foram necessárias diversas sessões em diversos lugares (inclusive em países diferentes), horas de fita e muitas quebras de paradigmas para que esse álbum fosse concebido. A banda, quando percebera o rumo que havia tomado, causou tanto pânico entre eles quanto o álbum causa em nós: será que abandonamos nossos instrumentos? Damos um passo sem volta? O álbum não teve singles  para promove-lo, não dando assim ideias para banda de uma expectativa de recepção do público de suas novas músicas. Eles usaram da internet para promover o álbum e, pela primeira vez na história (que se há notícia), o streaming foi utilizado para promover um novo álbum. Assim, o álbum foi pirateado em sites como o Napster, inicialmente visto como uma consequência negativa. Mas a banda percebeu que na verdade isso fez com que as pessoas se engajassem mais com as músicas novas, causando o efeito de que muitos já cantavam a letra deles em shows onde o álbum não havia sido lançado ainda. A verdade é que os números não mentem: mais uma vez, o Radiohead foi número um no chart do Reino Unido e, pela primeira vez, também nos Estados Unidos, ficando também entre as cinco primeiras posições em vários outros países. 

                  “Kid A” fecha um ciclo e inicia outro na vida da banda, mas, mais do que isso, ele antecipa o século XXI em alguns meses: todas as novas formas de consumir música acontecem com ele e todo o seu conteúdo reflete uma geração qual faço parte e, mesmo 16 anos depois de seu lançamento, sente-se contemplado. Ele permitiu que houvesse inovação no mainstream, que foi sempre complicada, e denunciou que talvez o mundo artístico estava preparado para voltar a abrir sua cabeça como outrora. Um som mais "head" do que "Radio". Quase que instantaneamente compreendido pelo público e pela crítica, este álbum nunca envelhecerá, liricamente e sonoramente, e sempre será digno de revisitação, mesmo que traga alguns fantasmas à tona, que na verdade, são sentimentos compartilhados por milhões de pessoas que o têm. Ele só corrobora o que Steven Wilson diz em seu documentário “Insurgentes”: a música melancólica, apesar de triste, mostrando que não estamos sozinhos em nossas angústias, confortando-nos e trazendo-nos, de certa maneira, felicidade.

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