Monday 23 September 2013

Discipline - Um novo conceito de música


Falar de King Crimson é complicado, por ser uma banda que tem diversas fases em sua discografia. Pretendo ainda postar outras resenhas de seus discos, então não vou me ater muito ao histórico de cada integrante de formações anteriores. Resolvi começar pelo “Discipline” por ele ser o começo de uma nova era do KC após um longo hiato, onde cada um de seus integrantes da última formação (que registrou “Red”) estava em um projeto completamente diferente, e é isso que faz com que o King Crimson seja tão rico musicalmente: a vasta bagagem musical de seus integrantes, combinadas da forma mais original possível.

Em 1981, Robert Fripp, guitarrista e fundador do KC, tinha a ideia de montar um grupo que fosse mais ambicioso musicalmente e comercialmente falando, pois ele estava no The League of the Gentlemen, que é uma excelente banda, porem de difícil audição, considerando a cultura pop da época, que estava entrando na era do New Wave. Ele havia tido experiências musicais no pop com grandes nomes, como David Bowie e Peter Gabriel. Após entrar em contato com Bruford (baterista dos últimos três álbuns do KC antes do hiato) a respeito de um novo projeto, ele vai atrás de Adrian Belew, que Fripp havia conhecido quando ele fez as aberturas do The League of the Gentlemen com sua banda GaGa. Adrian Belew foi descoberto por nada menos que Frank Zappa, que havia achado curioso como ele conseguia realizar os mais diversos sons em sua guitarra (mosquito, elefante, ambulância e por aí vai) e esse então excursionou com ele, onde atuava mais como guitarra base e cantor de poucas músicas, além de ter gravado o magnífico “Sheik Yerbouti”. É dada a hora de escolher um baixista. Após uma curta audição, com três baixistas, eis que Fripp aparece com Tony Levin, em que ele havia tido contato nas gravações de Peter Gabriel. Esse dispensa comentários: o que falar do cara que colaborou em mais de 500 álbuns, dentre estes artistas como Pink Floyd, John Lennon, Dire Straits, Buddy Rich, dentre outros grandes nomes?

Feito a formação, a banda voa para a Inglaterra e começa a escrever as músicas e a ensaiar. O que temos nesse momento é o seguinte: Fripp com seus sintetizadores e seu Frippertronics, que era a técnica de looping (repetição) onde uma faixa era gravada na fita e se repetia, enquanto outras faixas eram gravadas e assim reproduzidas simultaneamente que, unidas ao sintetizador, criavam uma ambiência fantástica. Fripp já vinha usando essas novas técnicas com quem ele trabalhou nesta época, mas principalmente com Brian Eno. Bill Bruford estava com novas ideias de experimentação, que incluíam o uso da bateria eletrônica e o não uso direto do chimbal como forma de condução, usando os tons e o prato de condução. Além disso, ele ainda incorporou elementos de percussão, ideia que vinha desde a gravação de “Lark’s Tongue in Aspic” com o percussionista Jamie Muir. Adrian Belew estava trabalhando e excursionando com o Talking Heads, e talvez foi o que mais teve inspiração e contato direto com o New Wave/World Music, principalmente tratando-se de David Byrne, líder do Talking Heads. Tony Levin também havia trabalhado com Peter Gabriel e estava repleto de influência da World Music. Mas ele talvez foi o que trouxe a contribuição mais excêntrica para a sonoridade desse álbum, o chamado Chapman Stick:


O Chapman Stick combina guitarra com baixo, e geralmente é tocado com a técnica de tapping, ou seja, pressionar as cordas com os dedos, e no caso do Levin utilizando as duas mãos, uma para a parte do baixo e outra para a parte da guitarra. Isso abre um caminho diferente de harmonização, em que os quatro souberam explorar muito bem.

Logo já se vê na primeira música “Elephant Talk”: o inicio dela é justamente um riff de Levin no chapstick. E nesta faixa, já somos introduzidos ao que viria a ser o novo som do King Crimson pelos próximos dois álbuns, e que podemos chamar de um novo conceito de música: Bruford inicia uma condução que lembra alguma coisa dos paradiddles do funk, a guitarra de Belew com acordes alavancados, imitando o som de um elefante em alguns momentos, Fripp em arpeggios repetitivos e hipnotizantes, usando de seu sintetizador em um solo que poderia ser definido como “a voz de um mosquito” e Levin completando a cozinha complexa da música, e quando digo complexa não me refiro ao número de notas, mas sim a contrapontos e notas que criam uma harmonia percussiva na música. A letra cantada por Belew não é nada parecida com as anteriores do KC: é uma letra mais simples, mais descarada, mais moderna.
Talk/ it’s only talk/ Arguments/ Agreements/ Advice/ Answers” e assim continua Belew nas estrofes subsequentes, utilizando as próximas três letras do alfabeto para iniciar todas as palavras relacionadas a comunicação. Isso acontece com todas as letras deste álbum: são espécie de poesias modernas, com temas mais urbanos, sem muito nexo. A questão fica mais evidente em “Thela Hun Ginjeet” que é um anagrama para “heat in the jungle”, onde boa parte da letra consiste na gravação de um relato de Belew a respeito de uma gangue e um policial que o abordaram e em “Indiscipline” que é baseada numa carta que Belew enviou para a esposa a respeito de uma escultura que ela havia feito. Isso mostra uma total quebra com o passado, onde a preocupação com letra foi tão grande que já chegou a haver um membro só para escreve-las.

Seguindo com as músicas, ouvimos a bela “Frame By Frame”. Frenética, tem uma levada violenta nos tons, acompanhado por impactos graves no Chapman stick, mais arpeggios de Fripp e uma guitarra carregada de efeitos e trejeitos de Belew. Um ponto interessante que deve ser observado nessa música é quando Belew e Fripp estão tocando em alguns momentos juntos, praticamente a mesma frase mas em tempos distintos (um no contratempo do outro). Isso cria um efeito hipnótico e uma linha rítmica muito interessante que vai permanecer no King Crimson até o seu último álbum lançado, “A Power to Believe”. No final dela, essa característica fica bem nítida, e quando há a dobra de tempo de uma das guitarras, você percebe o quão esse efeito é fantástico. Em “Thela Hun Ginjeet”, Fripp executa um riff em 7/8, enquanto a banda inteira toca em 4/4, criando um efeito rítmico único. Nessa música, percebemos o quão pode-se ir longe ao criar ambiências com as guitarras, em momentos em que Belew realiza uma espécie de percussão com harmônicos abafados e delays, assim como quando extravasa o uso da alavanca, e Fripp usando e abusando de seus efeitos, seja nos solos ou nas bases. Na bela “Matte Kudasai”, Belew usa a guitarra em slides, unidos ao delay e ao uso do botão de volume, criando em certas horas uma atmosfera que nos dá a sensação de flutuar no ar e em outras o barulho de gaivotas! A linda melodia de vocal de Belew completam o clima tranquilo da música. Em “Indiscipline”, é o momento de Bill Bruford se libertar de ritmos únicos e realizar uma espécie de improviso, com diversas hemiolas, principalmente quando executa ao vivo.

As instrumentais fecham o disco com maestria. “The Sheltering Sky” é registrada com Belew fazendo a base e Fripp passeando com o Frippertronics e sintetizadores. Vale destacar o uso da Slit Drum por Bill Bruford, uma espécie de caixa percussiva que é utilizada mais na percussão africana, incorporação que caracteriza a World Music. Este é um elemento essencial na música, criando cozinha ideal para que houvesse o realce das belas guitarras de Fripp. “Discipline” é uma faixa que poderia ser definida como “hipnose musical”. Com o excesso de repetição de riffs, as guitarras tocando arpeggios diferentes em tempos diferentes com o mesmo timbre, a bateria percussiva e o chapman stick em frases complexas, que enganam os ouvidos por vezes se estão usando ou não a sua parte guitarra, temos uma música que cria um estado de ritmo arrítmico, de conforto que incomoda, uma hipnose consciente regada a curiosidade de imaginar como esta música está sendo executada.

Este álbum pode ser definido com o estranho rotulo de New World Wave Music complexa. Não é música para dançar, mas também não é música para relaxar. O título,” Discipline” exprime a técnica e concentração dos músicos do KC ao executarem composições tão complexas, e ao mesmo tempo vai de desencontro com o que o álbum reproduz: desconstrução, rompimento com o som tradicional da banda, inconstância. A primeira audição de “Discipline” será confusa: você pode não conseguir ouvir a obra como um conjunto, prendendo-se a guitarra histérica de Belew, perdendo-se no ritmo hipnótico de Bruford. Mas tenho quase certeza que a vontade que você vai ter ao acabar a audição é querer ouvir de novo, e de novo, afinal: “I repeat myself when I’m under stress”! Quando finalmente você se acostumar e conseguir enxergar o conjunto da obra, tenho certeza que “Discipline” será um álbum para toda a vida. E é por isso que tentei em meu texto explicar ao máximo os detalhes técnicos de cada música: deixe que flua na primeira vez, e então volte a lê-los (principalmente se você é musico e se interessa por novos conceitos).

Espero não ter prolongado demais o texto. É extremamente difícil escrever a respeito de um dos álbuns mais fascinantes da carreira do King Crimson e com certeza um importante marco na música mundial. Segue agora a tracklist e o link para audição do álbum:




Abraços e tenham uma boa experiência!

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